MANHÃ SUBMERSA * Vergílio Ferreira * 1954 1ª Edição
Descrição
MANH; SUBMERSA (Romance)Vergilio Ferreira1954 – 1ª Ediç;oCom Capa e Ilustrações de António CharruaBrochado; 234p.; 20×13 cm,Ilustrado com 5 desenhos de página inteira.
O real e a ficç;o na “Manh; Submersa” de Vergilio Ferreira
Em 1954 foi publicado pela primeira vez o conhecido romance Manh; Submersa de Vergilio Ferreira. A obra vegetou durante quase vinte anos até que se tornou bastante conhecida após o 25 de Abril de 1974. Para isso contribuiram três factores fundamentais: a consideraç;o e fama do autor, o filme realizado por Lauro António e o aproveitamento politico da obra como um ataque à Igreja e à educaç;o nos seminários.
A Manh; Submersa recorda a vida passada por António Lopes, o alter-ego de Vergilio Ferreira, no pequeno Seminário da Diocese da Guarda, situado junto às Donas e ao Fund;o. O narrador foca um passado vivido com tal intensidade que se torna presente em direcç;o a um futuro. N;o se trata de uma memória qualquer, mas de uma memória interrogativa, angustiante, por vezes trágica, analisando a consciência como Dostoievski, dando menos valor à vis;o sociológica t;o querida por Balzac. A memória vive entre a realidade e o imaginário.
Ora a distinç;o entre o real e a ficç;o n;o é fácil, pois n;o sabemos muito bem onde está a diferença entre os dois. Francois Mauriac notava que quando numa obra sua tinha factos inspirados no real, os leitores descobriam uma maravilhosa ficç;o. Pelo contrário, quando determinadas acções eram para ele efabulaç;o, os leitores afirmavam ver ai cópia do real. Paul Ricoeur chegou a escrever que a ficç;o era mesmo um supra-real. Vergilio Fcrreira, por sua vez, afirma que “o real é uma vigarice” e fala mesmo da insensatez da realidade em literatura. Entendo por real a vida original, autêntica, conhecida, vivida pelos jovens no Seminário do Fund;o e de modo particular por António Lopes, o alter-ego do autor. Associo ficç;o à procura do belo, à interiorizaç;o, à transfiguraç;o, à forma poética de transmitir essas mesmas realidades. Ao analisar o real e a ficç;o tentaremos percorrer os lugares que o autor desvendou, identificar as pessoas com quem viveu, trilhar os caminhos da educaç;o, chorar a evidência da morte, aprofundar o mistério do transcendente.
Os espaços e os tempos
A acç;o do romance ocorre na Beira Alta, num espaço que o autor conhece e sente muito bem. Vergilio escreveu de si mesmo: “Levo a provincia comigo e me instalo nela”. Tudo se passa na aldeia de nascimento do protagonista, no Seminário e durante as viagens da ida e vinda de férias. Reencontramos cidades e vilas reais, como Celorico da Beira, Trancoso, Guarda, Belmonte, Covilh; e Alcaria. A Guarda, capital do distrito merece particular destaque sobretudo com um episódio passado numa pens;o (63-68) [As páginas mencionadas neste artigo pertencem à ediç;o da Livraria Bertrand, 1979]. Também a Covilh; se revela com algumas particularidades geográficas e atitudes anti-clericais, pois nessa terra os seminaristas s;o comparados aos corvos. Curiosamente a aldeia de origem, Melo, aparece com o nome de Castanheira. Que motivos teriam levado o autor a escolher este nome? Talvez o facto de ver os castanheiros como simbolo de permanência, factor de identidade e força económica, Ele os descreve “esguios, subindo tristemente pela colina, no silêncio frio da manh;” (27), repetindo logo a seguir “esguios, errantes pela colina, vagos, desencorajados”. (32) Também na obra de um outro escritor beir;o, Aquilino Ribeiro, o castanheiro é eterna presença, chegando a dizer que há “castanheiros que deram sombra aos mouros”. O Fund;o é identificado por Torre Branca, talvez por associaç;o com uma casa ilustre que ainda hoje se levanta no lado esquerdo, à saida da vila em direcç;o ao Seminário e que pela sua estrutura recorda uma torre. Sendo torre é espaço fechado, sendo branca é claridade.
Os espaços s;o detestados. A casa de D. Estefânia aparece como um claustro. O seminário é asfixiante, como acontece em outros romances onde se fala de formaç;o sacerdotal. Em Le Rouge et le noir podemos ler: “Voilà donc cet enfer sur terre, dont je ne pourrai sortir”. Há no autor uma profunda topofobia. Reais, embora mitológicas e transfiguradas, s;o as montanhas, a Gardunha com o seu manto verdejante e a Estrela com as suas neves imaculadas. Dela escreveu Vergilio: “Olho a serra e n;o me canso de a olhar na sua imóvel magnitude”, escreve em Cartas. As viagens têm também algo de simbólico e mitico e s;o ao mesmo tempo ocasi;o de encontros e libertaç;o, factor de auto-conhecimento, numa permanente luta entre o eu e o mundo em relaç;o de que fala Goethe. –
Façamos uma breve história do Seminário do Fund;o. A Diocese da Guarda mandara construir o Seminário de Nossa Senhora do Rosário, mais conhecido por Seminário do Mondego e que fora aberto em 30 de Outubro de 1904. A direcç;o dos trabalhos esteve confiada ao Padre Manuel Mendes da Conceiç;o Santos, futuro Arcebispo de évora. Era Bispo da Guarda D. Manuel Vieira de Matos que veio a ser Arcebispo de Braga. Pouco tempo depois veio a implantaç;o da Republica e foi confiscado pelos revolucionários. Para a educaç;o dos jovens seminaristas a Diocese consegue no Fund;o um imóvel que antes tinha sido uma fábrica. “A antiga casa da fábrica foi doada por António Ribeiro Ferreira”. Inicia as suas actividades no ano lectivo de 1919-1920, após uma certa acalmia trazida por Sidónio Pais. No seminário, que era o liceu dos pobres, se formaram centenas de jovens, até que a Diocese constrói um edificio novo, n;o muito longe do antigo e que começa a funcionar em Outubro de 1935. E na velha casa que Vergilio Ferreira vai passar cinco anos.
No romance o Seminário é descrito como efectivamente era, um casar;o pobre, frio, com janelas rasgadas. No rés-do-ch;o estava a cozinha, o refeitório e as salas de estudo com as canteiras, o pulpito de vigilância e um olho na porta. No primeiro andar encontravam-se as camaratas, a capela e uma enfermeira que em dia de tempestade ficou destruida. Cá fora e do outro lado da estrada um jardim (163) e para o lado da encosta “a fila de retretes, em frente, acocoradas sobre um rego de água” (23), água desviada da ribeira que desce de Alcongosta e que ainda hoje corre entre arbustos verdejantes.
Se tentarmos verificar os tempos dos acontecimentos n;o encontramos qualquer indicaç;o. Outros autores como Alexandre Herculano e Stendhal temporalizam as narrativas nas respectivas épocas, ajudando assim a esclarecer os acontecimentos. Alexandre Herculano situa O Pároco de aldeia em 1825 e as Lendas Narrativas têm todas a sua data. Stendhal junta ao titulo Armance a seguinte informaç;o: ou quelques scènes d’un salon de Paris em 1827. O romance Le Rouge et le noir está completado por: Chronnique de 1830. Se o autor tivesse especificado o tempo da sua estadia no seminário, o leitor de Manh; Submersa poderia ter compreendido melhor a história, os factos, os processos educativos e as reacções das pessoas, Mas ele defende-se dizendo que “todo o grande livro é datado, Mas o que n;o tem data é o que sobra dessa data. Sobra alguma coisa de Manh; Submersa”. O autor nota ainda que n;o seguiu uma ordem temporal. “Impossivel seguir, na minha narrativa, uma cronologia continua” (123).
Vergilio, ao suprimir o tempo, pensou numa mensagem para além do tempo, numa obra para a imortalidade ou se preferirmos à beira do intemporal. Em Os Lusiadas também Camões eliminou as referências temporais, deixando na sua epopeia somente uma, a data da partida para a india:
“Cursos do Sol catorze vezes cento
Com mais noventa e sete, em que corria
Quando no mar a armada se metia”. (V-2)
O autor tem, no entanto inumeras referências ao tempo, ou melhor à temporalidade. Deixa-se impressionar pelas sombras da tarde, o nevoeiro que desce a montanha, o frio de Inverno, a noite limpa. Normalmente a suas obras começam por falar do tempo, dos meses, do frio e do calor, como no romance Até ao fim. O romance Para sempre começa deste modo: “Para sempre. Aqui estou, E uma tarde de ver;o, está quente. Tarde de Agosto”. O autor que viveu obcecado pelo tempo prefere à cronologia uma simples cronografia, Para ele o tempo era insondável, por isso se fixa nos tempos atmosféricos ou nas vivências das personagens. Ora é nestes espaços e tempos que se movimentam as pessoas, cuja existência real objectiva vamos tentar desvendar.
As Pessoas e as personagens
Deixemos de lado as pessoas da aldeia, a Dona Estefânia, a m;e, o tio, os amigos. Fixemos a nossa atenç;o somente nos padres e seminaristas e de modo particular na vida que Vergilio Ferreira efectivamente passou no Seminário. Alguns padres presentes no romance foram facilmente identificados pelos meus interlocutores e antigos companheiros do autor. O Pe. Lino, professor de latim é o Pe. José Paula Fino que mais tarde foi pároco de Vila Nova de Tázem. O autor só mudou o nome Fino para Lino, pois o patronimico tinha conotações de um certo agrado que n;o se cooadunavam com a personagem. O autor caracteriza-o como funesto, agressivo, “de olhares curtos como bicadas”. Analisa-o mesmo como “Meio padre de Deus, meio padre de bruxas e do Demónio” (174). Era terrivel com a palmatória e o Lopes receia que o “Pe. Lino me desfizesse à pancada” (187). O Pe. Tomás, muito presente no romance era o professor de português, pouco simpático pois “que sofria do figado, malhou neles paternalmente” (111). Surge como “vasta sombra que se projecta em todo o seminário, irascivel e temivel”. O Pe. Tomás faz recordar o Pe. Gustavo Adolfo Ribeiro de Almeida que era na realidade professor de português. Mais tarde teve responsabilidades directivas no Grupo das noelistas e paroquiou uma conhecida freguesia de Lisboa. Os dois padres eram ferozes, temiveis e os alunos ainda vivos guardam deles tristes recordações.
Geralmente os padres n;o s;o muito simpáticos: “Rememoro o humor frisado e agressivo do Pe. Lino, a vasta sombra do Pe. Tomás nos corredores, a feminilidade nervosa do Pe. Fialho, o grosso Raposo, o Pe. Martins de pau, o melancólico Pita, o Silveira, o Canelas, o Reitor” (124). Noutra ocasi;o tenta completar os retratos dizendo que o Pe. Canelas “cobria-nos de agoiro” (32), o Pe. Raposo é “carrancudo”; o Pita tem “olhos escorraçados” (32); o Pe. Martins tem um carácter “frio e desumano” e mostra-se “exacto e magro como um artigo de Regulamento” (33).
Só o Padre Alves se salva. Com a sua “fronte de gigante” era um “bom var;o que me tratava por filho” (39). Mostrava-se “verdadeiro e humano” e envolvia-o uma lenda de “coragem e de glória”. Iluminava o seu rosto um “olhar silencioso e compassivo” (178). Os antigos alunos vêem no retrato deste Pe. Alves o confessor e pároco das Donas, Joaquim Alves Brás que depois seria director espiritual no Seminário Maior da Guarda e fundador da Obra de santa Zita. O reconhecimento geral das suas virtudes faz com que decorra presentemente o processo da sua beatificaç;o.
Numa análise cuidada é fácil reconhecer que um dos retratos menos veridico e exacto é o do Reitor, Monsenhor António dos Santos Carreto natural de Aranhas. Na realidade, como pessoa, O Reitor era muito diferente da descriç;o elaborada por Vergilio. Descreve-o fisicamente assim. “N;o era um homem alto, nem rude, nem agressivo. Tinha uma fala doce, vagarosa, levemente nasal. E, que eu saiba, nunca aplicou a nenhum aluno qualquer castigo violento” (34).Mas logo a seguir o autor diz que o recorda “como o simbolo mais perfeito do terror2 (35). “O terrorismo dele era puro de silêncio” (35). No fim do encontro com o Reitor confessa que n;o foi castigado e teve “o desejo de clamar, para a lonjura dos salões, a bondade do Reitor, a sua grandeza de Senhor” (44). A maior parte dos antigos seminaristas reconhecem no seu antigo Reitor, Monsenhor Carreto altas qualidades de pedagogo. Há, no entanto, um pormenor que devemos salientar. Todos os padres têm nomes, adaptados ou ficticios. O Reitor n;o tem nome. Em Gil Vicente também encontramos personagens que n;o têm nome e por isso s;o tipos porque sintese de outras pessoas com a mesma funç;o. O Reitor n;o é mais do que o simbolo do poder. Ao criticá-lo o autor critica o poder dos directores escolares, como faz em Apariç;o, quando o Dr. Alberto vai ao Reitor e diz: “Eu ali, eterno réu perante o mundo e a vida”.
Também alguns seminaristas, “os fatos pretos” como o autor repete frequentemente, apresentam nomes que antigos colegas reconhecem, como seja o Taborda e o Henrique. De outros é feito um retrato, mas com nomes diferentes. Alguns condiscipulos reconhecem facilmente em Gaudêncio o Brigas que veio a morrer vitimado pela epidemia que grassou no Seminário do Fund;o e que fez com que a casa estivesse fechada quase um mês, ficando os alunos em casa dos pais (196).
Para Vergilio Ferreira as pessoas n;o s;o mais do que meios utilizados para explicar a existência, desvendar o mistério das coisas e ouvi-las para saber interrogar-se. Ao falar das pessoas, reconhecemos que o autor vive entre o absoluto e a medida, o real e o sonho, a noite e a claridade.
Mas como era realmente a vida de Vergilio Ferreira no Seminário do Fund;o?
O retrato que aqui deixamos é a sumula de informações recebidas dos antigos companheiros. O autor de Manh; Submersa revelava-se muito timido, talvez por causa da sua educaç;o e das relações com as tias e a avó materna. A agressividade que por vezes encontramos em páginas de Conta-Correntetalvez n;o seja mais do que um modo de se defender, mais do que atacar. Teve ocasiões em que a sua saude era frágil, chegando a alimentar-se com a comida dos professores. Mostrava-se por vezes taciturno, um pouco severo, muito observador das regras. As suas notas de comportamento de que dá conhecimento (190) eram excelentes. Todos os colegas desse tempo est;o de acordo de que ele era muito inteligente, superior, com excelentes notas (16 a latim no primeiro e no terceiro ano). Em Português revelava já dotes invulgares. Em carta de recomendaç;o enviada para o Seminário do Fund;o, datada de 1 7 de Agosto de 1926, o pároco depois de enaltecer a familia, as qualidades morais e o gosto de Vergilio pelo violino, afirma: “tenho também verificado que é um espirito penetrante, devendo trazer muito prestigio à Igreja e à classe eclesiástica se tiver a dita de se ordenar”. O seu pároco Pe. António de Jesus Parente mostra um grande poder de observaç;o. Os dotes musicais de Vergilio continuaram pois chegou a tocar flauta na Banda do Seminário e violino na Tuna Académica de Coimbra. Uma outra caracteristica, bem gravada na memória dos colegas, é que Vergilio tinha excelentes qualidades de actor. Recordam-se actuações no drama Tarcisio e na peça Sat; em que faz o papel de anjo. Para ele eram reservadas personagens afáveis, de uma certa ternura. Nos estudos de filosofia distinguiu-se de forma relevante, tendo merecido frequentes e rasgados elogios do seu professor Dr. Jo;o Mendes Abranches. Enfim era muito admirado por condiscipulos e professores. Como escreveu um antigo aluno do Seminário, Vergilio “Foi apreciado, bem tratado e até amimado”. N;o era propriamente um “graxista” (196), pois merecia a consideraç;o que lhe devotavam. Mas a vida dos seminaristas será melhor compreendida se recordamos os processos de educaç;o.
Caminhos da educaç;o
Já vários criticos definiram Manh; Submersa n;o como um romance sociológico mas de adolescência, e educaç;o. José Rodrigues Paiva confessa que “a preocupaç;o com o social é secundária”, pois nota-se um “mergulho psicológico na consciência da personagem. A educaç;o dos jovens seminaristas faz-se pela vivência e relações quotidianas, a descoberta de si e dos outros e ainda pela aprendizagem de um certo saber.
A vida dos seminaristas encontra-se muito bem descrita na Manh; Submersa que dá a conhecer a vida real de ent;o. Foquemos só alguns factos mais originais da vida passada no Seminário e que descritos n;o s;o simples fruto da imaginaç;o do autor, mais reais, autênticos e que perduraram bastante tempo, pois eu mesmo ainda vivi algumas destas situações no novo seminário do Fund;o.
Fund;o
Os seminaristas tinham fatos pretos, o que leva o autor a empregar muitas vezes esta designaç;o em vez de seminaristas. Na viagem para o Fund;o refere várias vezes a entrada de uns tantos fatos pretos. Na vida quotidiana vestiam uma bata de xadrez, com cinto, feito ora do pano da bata, ora de cabedal. O autor conta o episódio um tanto caricato de um cinto que se perde e que serve para um divertimento. Os alunos estavam agrupados em “divisões”, três ao todo, quando antes eram só duas. Na primeira estavam os mais pequenos, na segunda os médios e na terceira os maiores. Antes a ordenaç;o era inversa. Os alunos de divisões diferentes n;o podiam comunicar entre si. As calças eram tiradas dentro dos lençóis, e acordava-se ao som da voz do prefeito que anunciava: Benedicamus domino a que os jovens ainda sonolentos respondiam Deo Gratias. Era proibido ter qualquer coisa para comer, artigos a que na sua giria os seminaristas chamavam contrabando. Por isso Lopes fala dos seus queridos figos que defende a todo o custo. Em certos dias do ano havia grandes passeios, as chamadas casas de campo. Normalmente eram cinco, pelos Santos, dia 12 de Janeiro, aniversário do Reitor, dia 18 de Fevereiro aniversário do Bispo, uma pela Páscoa e outra no fim do ano. Havia aulas em que os alunos estavam divididos em dois grupos, dois exércitos, com regras que o autor especifica. Como divers;o e entretimento havia alguns jogos, sobretudo o da barra e o da bandeira, Para a formaç;o musical existia uma Banda em que Vergilio tocava flauta e para a educaç;o literária uma Academia que ainda hoje perdura. é evidente que as cartas eram entregues abertas. A vida de piedade seguia as regras e as devoções que encontramos no romance. Tudo como conta o autor. Estamos de certo modo perante uma biografia próxima do real.
Fora do Seminário atormentava os alunos o M;o Negra (112), um bandido que os meus interlocutores identificam com o Zé do Telhado e que chegou a ocultar-se numa roda de lagar, conseguindo deste modo fugir à policia. Eram tempos de dificuldade, com carências de toda a ordem, compulsivamente vividos por jovens em plena adolescência. Havia pois ânsias de sair, de fugir, de procurar a liberdade (105). Um outro caminho do desenvolvimento pessoal passava pela descoberta da vida que despontava, pela invocaç;o ao corpo.
No Seminário começa o adolescente a ter a vivência, a escutar as vozes do seu corpo em transformaç;o. Muitos anos mais tarde Vergilio Ferreira escreverá uma obra com este titulo: Invocaç;o ao meu corpo. Ora se invoca o corpo é porque tem consciência de que o corpo n;o é seu, embora ele o tenha e o corpo o tenha a ele também. Se Merleau Ponty escrevia Humanisme et terreur e confessava que “eu sou o meu corpo”, Vergilio olhava para o corpo como um mistério, convicto de que como dizia Sófocles, “o maior prodigio é o homem”. Sabia, no entanto, que este homem é uno e é esta unidade que lhe dá sentido.
No seminário os jovens viviam dominados por uma moral crist; que os excitava entre paradoxos e contradições, Por um lado a negatividade, por outro a apregoada sublimaç;o das paixões. Por um lado o recalcamento, o reducionismo, por outro lado uma apregoada vitalidade e personalismo, Por um lado a privaç;o, o assassinato das pulsações, por outro o enriquecimento com valores que se querem imortais. Por um lado a destruiç;o do eu, do mundo, por outro lado a sublimaç;o de nós mesmos, Na vida era forçoso procurar o eclipse de tudo o que se supunha acessório e ouvir as vozes do silêncio para se construir uma personalidade capaz de viver num mundo de castelos e fortificações. Tal programa de vida n;o impedia o desejo de possuir e de ser possuido, de viver só, mas em comunh;o. Trata-se de fazer a aprendizagem do amor ou se quisermos de vários amores sentidos e cantados no mais intimo de cada um.
Na aldeia de Melo ainda hoje se fala de uma relaç;o amorosa entre Vergilio e a filha de um brigadeiro, amor que nunca se concretizou por oposiç;o do pai da jovem, Por este motivo a jovem morreu tuberculosa e de desgosto, segundo crença do povo. Vergilio confessou um dia a um antigo colega do Seminário que pretendia cantar este amor. Tê-lo-á feito em alguma das suas obras?
Na adolescência é forçoso descobrir a sexualidade que desponta, a sós ou através de revistas. A mulher enche o coraç;o, seja a seduç;o de Mariazinha, o encantamento provocado pelos seios da Carolina ou o sonho com a irm; do Gaudêncio. O tio Gorra espicaça os sentimentos com a hipótese de uma vida impossivel sem mulher No entanto os jovens s;o levados a um recalcamento, a uma mutilaç;o do seu eu, no aspecto fisico, empirico e psicológico. Pregam-lhes que devem amar a Deus, socorrer o próximo, mas n;o se podem amar o que é profundamente anti-evangélico.
Um outro factor de educaç;o a relaç;o entre a amizade e o ódio. António Lopes vive uma intimidade de situações e sensibilidades com o Gaudêncio e o Gama. Há nestas relações um abrir-se aos outros, uma comunicaç;o de afectividades que procura a plenitude. Mas nestas relações humanas há muitas vezes humilhaç;o e ódio. O Dr. Alberto tenta rebaixá-lo com perguntas sobre a Gramática latina. No comboio é objecto de escárnio. Na estaç;o da Covilh; sente-se fustigado embora sem raz;o. Nas aulas sofre-se sob a dureza da palmatória. Enfim a sensibilidade é agitada, ferida no que há de mais profundo e sagrado.
Para esta situaç;o contribui imenso o descobrimento da hipocrisia de que Dona Estefânia e o Reitor s;o os principais protagonistas, sobretudo quando se fala de vocaç;o, Mas n;o só a vida com a sua dureza ajuda a construir
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